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Todo domingo era a mesma coisa.

Reverendo Torres subia ao altar, passava alguns minutos relembrando todos da agenda comunitária da igreja, e dava espaço para o coral cantar três músicas. Às vezes, pastor Lúcio ministrava. Ele era mais arrojado, deixava o coral cantar quatro músicas. Quem não ama um tomador de riscos? Mas em toda experiência que Joana tinha na arte de não entrar em coma durante uma pregação, - e acredite, era experiência o suficiente pra conseguir um trabalho de nível iniciante no século XXI - ela tinha certeza de que a bola de fogo que destruiu as quatro primeiras fileiras de bancos não era uma parte comum das leituras de Salmos 122:1. Qualquer que fosse a prática sacerdotal comum, o fato era: 20 crianças nunca mais teriam a chance de ir pra escola dominical.

Por um segundo, a sala congelou, tensões subindo por trás da mais genuína barreira de incredulidade, segundos antes da histeria tomar as rédeas e cavalgar com a consciência coletiva da congregação aos confins da racionalidade, cada pensamento desregrado gerando uma reação violenta contra as paredes do prédio. Descargas elétricas, pilares de fogo, ondas de choque e garras incorpóreas davam fisicalidade aos desejos caóticos de uma multidão insana, os corpos se empilhando enquanto os mais sábios faziam carreira em direção à saída. Joana se levantou, e, aceitando a pura loucura do seu habitual domingo tedioso se transformando em uma recriação fiel dos pesadelos de Bosch, se deixou levar em um longo e intenso grito.



Cinco horas da manhã. A Fundação, na sua busca incessante pelos lugares mais remotos pra esconder seus segredos destrutivos demais até para diretores de projetos menos sensíveis, construiu a Área-11-PT nas profundezas da mata acriana. Parecia uma ótima ideia na hora. A sugestão tinha quebrado o gelo e arrancado risadas de uma das normalmente sérias reuniões mediadas por um membro do Conselho O4. Mas como sempre, pequenos detalhes escapavam a excitação inicial de uma ideia que soa animadora.

Eram sete horas da manhã no Pará, onde um evento SCP-001-PT-3XK em potencial estava começando.

Os funcionários da Área-11-PT, os únicos com acesso aos arquivos do objeto 001-PT, estavam duas horas atrasados em fuso-horário.

Diretor Aragão se levantou em um único movimento, um truque que havia aprendido nos seus anos de trabalho para a Fundação pra se chacoalhar do sono em emergências inoportunas como esta. Porra, o seu trabalho havia sido uma série de emergências inoportunas em intervalos irregulares por sabe-se lá quantos anos. Uma diferença importante entre Sítios e Áreas que não te contam na orientação de pessoal: Áreas são isoladas por um motivo. Se algo vai dar errado, chances são que será numa Área.

"Já acordou?", Aragão perguntou pra ninguém em particular, testando sua voz enquanto saltava da cama. A resposta de sua assistente Teresa através das finas paredes do dormitório era uma surpresa bem-vinda, de qualquer modo.

"E dá pra dormir com essa sirene?"

Pegando um jaleco qualquer do armário e o vestindo por cima do pijama enquanto saía do quarto, Aragão se encontrou com Teresa e os dois seguiram corredor adentro para o hangar. Se não estivessem no destino em duas horas, o diretor regional teria algumas palavras nem um pouco agradáveis pra dizer. E o mundo poderia acabar.

Quem sabe qual é mais importante numa semana de trabalho?



Tem muita gente ruim nesse mundo. Gente que te mataria pra roubar dez reais. Gente que toma vantagem da falta de experiência de crianças e faz com elas coisas que nenhuma criança merece viver. Gente que toma o dinheiro de muitos e o usa para o benefício de poucos.

Tem muitas coisas estranhas nesse mundo. Tumores vivos imortais. Para-sóis terraformadores. Rádios telepáticos.

Mas raramente - quando menos se espera - algo que toma primeiro lugar em ambas categorias aparece pra arrasar com tudo que há de moral e justo no mundo. Mesmo pra alguém com tanta experiência de campo com o anômalo quanto Teresa, o gigante vermelho com asas e chifres, rindo maniacamente como algo da uma capa de um álbum de heavy metal dos anos 80, dava razão pra segundas considerações. Os times de recontenção provisórios haviam montado um perímetro de Âncoras de Realidade Scranton em volta da igreja, repelindo instâncias de SCP-001-PT-3B com fogo intermitente. O demônio flutuando acima da basílica gesticulava na direção de operativos ocasionalmente, fazendo-os desaparecer como se nunca tivessem estado ali. Teresa colocou a mão contra o vidro blindado do transporte emergencial.

"Como a gente contém essa coisa?"

"Torce pra ela se conter sozinha."

A pesquisadora não tirou seus olhos do apocalipse nascendo meio quilômetro rua abaixo, esperando que Aragão elaborasse. Eventualmente, ficou claro que a elaboração não viria.

"Ha. Que engraçado. Essa foi boa. Haha. Mas sério como."

O diretor tirou um pacote de balas do bolso do jaleco e jogou uma na boca.

"Quer?"

"Quero uma explicação se for possível."

"Não é, sinto te informar." Aragão esperou alguns segundos pra apreciar a própria piada. Se ele não visse o humor na situação, sua assistente certamente não veria. "Temos que esperar um transporte de instâncias de 001-1, eles vão conter isso. Tomara, pelo menos."

Teresa sentiu as garras da incredulidade arranhando sua pele.

"Então o que a gente faz aqui?"

"Se tudo for bem, nada. Nosso trabalho é anotar o que vemos e dizer pros outros o que fazer." Aragão quebrou seu usual ar de indiferença, encarando Teresa e dando cadência pesada a cada palavra; "Se nós tivermos que fazer algo, a situação está muito fora de controle. Meu, seu, dos O4, O5, qualquer um."

Respirando fundo e se deixando mais confortável no banco do carro, Teresa suspirou.

"Então não pensar sobre o futuro é parte da preparação pra ele?"

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