Conto: Neve Tropical
avaliação: 0+x
blank.png

A transcrição a seguir é um dos documentos relevantes para a investigação do ocorrido nomeado "Neve Tropical". O texto se trata de um trecho do diário pessoal de um dos funcionários da Fundação Lusófona, Dr. Gabriel Kharlamov, que presenciou o ocorrido.

Diário pessoal de Gabriel Kharlamov.

11/12/2017
Hoje, fui enviado para uma missão de campo afim de estudar um fenômeno meteorológico incomum, e a possibilidade deste fenômeno ser de origem anômala. Foi basicamente tudo o que me foi dito, além de que seriam cinco longas horas de viagem até o local. Poderíamos ter usado um avião, eu disse, mas não me deram ouvidos neste quesito. Da equipe de meteorologistas da Fundação Lusófona estavam meus colegas Dr. Luan Ribeiro, pós-doutorado em meteorologia de 67 anos, e a Sra. Uta Zimmermann, especialista em meteorologia de 32 anos, além de mim. Os ademais eram o pessoal encarregado de garantir a segurança da equipe no local, além de trazer nosso equipamento e, obviamente, nos levar até lá.

Chegando ao local, através de uma das janelas do veículo, consigo ter o primeiro vislumbre do que estava por vir: neve. Em pleno Cerrado, no meio de todos aqueles arbustos, árvores retorcidas, Sol e calor, de grandes nuvens imóveis no céu, aqueles flocos de neve caíam. No momento em que vi, já pude começar a tentar pensar em que tipo de anomalia poderia estar causando aquele fenômeno tão excelso.

Todo o perímetro do local era cercado por cercas altas, o que me lembrava de que havíamos passado por outras cercas semelhantes há alguns quilômetros atrás, antes mesmo daquelas nuvens Nimbostratus serem completamente visíveis. Passamos por um portão, onde nossa entrada foi autorizada, e seguimos adiante. A partir da cerca, todo o chão e as árvores eram cobertas por uma camada de neve, medindo algo em torno de 30 cm. Era estonteante o quão curioso era ver aquelas árvores acostumadas com a baixa umidade e o calor impiedosos, naquela situação tão distinta e pitoresca.

Após mais alguns poucos quilômetros, somos avisados da nossa chegada ao local de estudo. Era uma clareira, onde podia ser visto um acampamento de outra equipe que chegara antes de nós, e um caminho que levava a uma grande quantidade de vapor saindo de uma fonte de água mais à frente. Ao vestirmos nossas roupas de frio e nos aproximarmos, vi que também se tratavam de cientistas da Fundação Lusófona, alguns até conhecidos meus, da equipe de geólogos.

Fomos recepcionados, e começamos os estudos. Nos compartilharam os dados já adquiridos. Ao que parece, existe uma fonte termal, algo comum na região, que constantemente solta vapor d'água céu acima e, de algum modo, esse vapor d'água está se resfriando e congelando rapidamente, formando a neve. Já descartamos a possibilidade de ser a influência de algum vento oceânico ou massa de ar vinda do sul, pois, conforme as informações que recebemos, aqui já está nevando há quatro meses. Além disso, o fenômeno é extremamente isolado, pois a neve aqui é constante, as nuvens não se movem de forma nenhuma e não existem quaisquer outros relatos de formação de neve aqui nesta região há mais de duzentos anos. O local não apresenta muitos animais, pois estes devem ter fugido do frio. A ausência de animais pôde ser confirmada devido às diversas câmeras espalhadas por todo o local.

12/12/2017
Feitas análises de fatores como velocidade e direção do vento, umidade relativa e temperaturas máxima e mínima do ar, entre outros, e a instalação de diversos instrumentos de medição, verificamos que todas as características eram compatíveis com as de uma região de clima frio ou de frio montanhoso, apesar de a região toda ser um planalto, com a presença de alguns morros altos, e de clima regional tropical.

Reunimos a equipe e partimos em direção da fonte termal. Ao chegarmos, podíamos ver que a fonte tinha um formato quase circular, medindo cerca de 50 m de diâmetro entre uma borda e outra. A temperatura da água se mantinha sempre entre 102 °C e 105 °C, com o vapor saindo sem parar. Os geólogos também conseguiram medir a profundidade da fonte, onde se observou que a profundidade máxima da fonte termal era de 40 m, além de que esta era mais profunda ao centro, como uma cumbuca, e que em algum local de seu fundo deve haver uma ligação até o aquífero termal mais próximo.

Ambas as equipes estavam recolhendo seus equipamentos afim de finalizar o dia, quando um dos geólogos faz uma observação curiosa. Ele estava observando parte do solo mais próximo à fonte, quando se percebeu haver uma estranha formação metálica próxima à beira. Foi iniciada uma breve escavação, e descobriram algo inusitado: havia uma grande camada de ferro separando a água do solo. A parte que foi primeiramente avistada fazia parte de um tipo de borda, arredondada e levemente curvada para fora. Toda a camada tinha uma espessura constante, espessura essa aproximada em 1,2 m, como se tivesse sido manufaturada.

14/12/2017
Hoje diversas máquinas de escavação chegaram até o acampamento, incluindo duas escavadeiras hidráulicas, uma mini escavadeira, uma pá carregadeira e um caminhão toco. Também foram deslocados mais 30 pessoas, afim de adicionar ao pessoal da escavação, e também mais alguns cientistas. O buraco escavado antes da chegada do equipamento especializado tinha cerca de 3 m de profundidade, e formava uma rampa. Foram descobertas diversas gravuras esculpidas no ferro, que ainda estão sob observação. Foram construídas mais sete tendas no acampamento, afim de alocar todo o pessoal, e uma grande tenda que serviria como galpão para o maquinário.

18/12/2017
A escavação atualmente já está nos 15 metros de profundidade, e descendo. Foi observado que o solo está acima da temperatura esperada, apesar do calor emanado pelo ferro. O calor do solo aumenta quanto mais a escavação progride.
Pude observar hoje que, das duas escavadeiras, apenas uma se concentrava totalmente na função de cavar a terra, enquanto a outra revezava entre cavar o solo e retirar neve de dentro do buraco.

20/12/2017
Com a escavação progredindo para os 25 metros, já estava mais que claro que aquilo não era uma simples fonte termal, e sim outra coisa. Começaram a surgir teorias do que seria aquele objeto e qual seu propósito. Porém, era bastante difícil afirmar que um objeto de tamanho tão massivo poderia ser feito pelo ser humano, principalmente pelo fato de que, apesar de oco, era feito de ferro maciço.

21/12/2017
Foi achado uma protuberância no objeto, semelhante a um pé. Aquilo comprovava uma das teorias que haviam sido feitas: o objeto se tratava de um caldeirão. Um caldeirão com mais de 40 m de altura/profundidade e mais de 55 m de diâmetro entre as extremidades do eixo horizontal. Ainda não sei se essa descoberta nos deixou mais perto de desvendar a real natureza do objeto, ou complicou ainda mais a situação.

22/12/2017
Alguns dos funcionários relataram estar sofrendo de episódios atípicos de parassonia, como sonambulismo, despertar confusional e pesadelos recorrentes. Os casos ainda estão sob investigação. Todos os funcionários presentes no local foram ordenados a relatar qualquer caso de parassonia que venha a ocorrer, seja este consigo ou com outro funcionário. É claro que isso pode ser apenas devido ao cansaço do trabalho de todos ou o frio, mas o número de relatos foi o suficiente para levantar a atenção da administração da missão. Além do leve cansaço, não sinto nada parecido.

A escavação avançou ainda mais hoje, e a causa do aumento da temperatura do solo, aparte do aquecimento decorrente do próprio contato com o caldeirão foi descoberta. Ao cavar próximo da parte mais inferior do caldeirão, foi encontrada uma brecha no solo. Da brecha era emanado uma grande chama de cor verde, o que explicava qual era a fonte de calor do caldeirão. Devido à sua cor incomum, foi presumido que, no combustível daquela chama, entre possíveis outras substâncias, deve haver uma concentração elevada de borato de sódio, ou outra substância de composição que, quando inflamado, produz a coloração verde.

23/12/2017
As operações da equipe de escavação foram cessadas por ora, por diversos motivos.
Primeiro: o buraco por onde saía o fogo precisou ser tampado novamente, pois havia o receio de que as condições estabelecidas anteriormente à escavação, no local da chama, ao serem modificadas, poderiam acabar comprometendo o fenômeno, ou que o gás lá presente pudesse ser perigoso.
Segundo: ontem, próximo ao horário de encerramento de atividades do dia, um dos operadores de escavadeira sofreu um acidente. Este supostamente acabou dormindo ao volante, fazendo com que a máquina acelerasse e perdesse o controle, batendo contra o caminhão-toco, danificando ambos os veículos. Felizmente, apenas o operador da escavadeira se feriu, saindo com alguns ferimentos leves e algumas contusões nas pernas e no braço esquerdo. Após o tratamento, este relatou que não havia sentido cansaço nenhum durante o dia, mas que havia sentido um cansaço grande e repentino poucos minutos antes do ocorrido. Com o pretexto de evitar mais acidentes, a escavação foi interrompida por tempo indeterminado.

24/12/2017
Mais alguns dos funcionários começaram a relatar sintomas de parassonia. Um padrão que percebi foi que os relatos eram mais presentes nos funcionários da equipe de geólogos, e outros que chegaram antes. Comentei sobre isso no meu relato, já que, de ontem para hoje, comecei a sentir uma leve febre, e dificuldades para dormir. Ainda estou torcendo para que seja só o frio, mas tenho um mau pressentimento sobre isso tudo. Pelo que fiquei sabendo, mais casos de sonambulismo vem sendo captados pelas câmeras do acampamento.

Aparte desse sentimento de preocupação, todos os estudos de hoje foram um sucesso, como de costume. Hoje, o jantar servido aos funcionários foi um pouco diferente do comum, incluindo arroz, feijão, farofa de linguiça, frango e batatas assadas, além de uma salada e doce de banana. Eu estava tão concentrado nos trabalhos que mal me lembrei que hoje era véspera de Natal. Antes de dormir, houve muita conversa e gente cantando, mas nada muito fora dos padrões, pois tínhamos um horário a manter, e todos foram dormir.

25/12/2017: Data do ocorrido.

27/12/2017
Mal sei como explicar isso em palavras. Vamos em partes.
Na madrugada do dia 25, após 01:00h, todos os funcionários que estavam adormecidos começaram a caminhar, em estado de sonambulismo. Estes vestem suas roupas de frio e se enfileiram, então começando a caminhar. Os funcionários que dormiam em cima de beliches acabaram caindo, e alguns acordando.

Eu tive a grande sorte de ser um dos que acordaram. Na queda, acabei machucando meu braço, minha perna, e ganhando um galo na cabeça, mas na hora não senti muito. Ainda desnorteado pela queda, abro os olhos, e vejo alguns dos meus colegas de trabalho e outros funcionários naquela situação bizarra. Levanto-me e tento achar um rosto familiar, então avisto Uta entre os funcionários. Tento me comunicar com ela, dizendo coisas como a falta de graça na situação, supondo ser uma piada ou pegadinha, mas sinceramente nem eu acreditava nisso. Eu e os outros despertados pela queda nos agrupamos e começamos a procurar algum guarda que estivesse acordado. Por sorte, logo os encontramos, e eu explico a situação. Um deles me reassegura que reforços já foram chamados.

Todos vamos correndo até a tenda do dormitório, porém, para nossa surpresa, está vazia. Os guardas saem da tenda à procura dos funcionários desaparecidos, e rapidamente os encontram. No caminho para o caldeirão, havia uma grande fila andando rapidamente, e chegando lá, vimos algo que não sei se poderia me esquecer. Os funcionários sonâmbulos estavam dançando e cantando ao redor do caldeirão. O caldeirão, por sua vez, irradiava uma forte luz lilás. O barulho das botas de frio batendo na neve, com a cantoria de sons inarticulados, porém com certa melodia, e o som da água do caldeirão borbulhando criavam uma aura estranhamente alegre e macabra. Nós que estávamos acordados estávamos mais distanciados do caldeirão, ligeiramente escondidos nos arbustos. Os guardas, após aparentemente reconhecer a não hostilidade dos indivíduos, decidiram prosseguir. Os sonâmbulos não pareciam reagir à presença dos guardas em meio a eles. Alguns dos sonâmbulos acordaram quando chamados à gritos pelos guardas, aparentando estarem cansados e perplexos.

Após certo tempo, todos os funcionários foram acordados, e levados de volta ao acampamento. O caldeirão para de brilhar e volta ao seu estado costumeiro. Podemos escutar o som de dois grandes helicópteros de aproximando do local, e eu finalmente sinto algum alívio. Pensando, eu agradeço o fato de ninguém ter se ferido. Não me cabia poder começar a pensar na causa daquele acontecimento insólito, ao menos não ali.
Todos os presentes no incidente foram observados, tratados e questionados. Conversei com Uta e Luan, mas nenhum dos dois parece lembrar dos acontecimentos. Não sei o que vai acontecer daqui pra frente, porém sinto que eu não vou mais voltar àquele lugar.

Ótimo.

Salvo indicação em contrário, o conteúdo desta página é licenciado sob Creative Commons Attribution-ShareAlike 3.0 License